ANIVERSARIAR-SE
Os olhos mareados, não de lágrimas, mas de sol. Amarelescências na manhã de segunda-feira. Resolveu aniversariar-se. Primeiro, abriu o guarda-roupa e dispensou os cinzas, os neutros, os nudes, assassinos da cor, tudo se faria verdeazulvermelholiláslaranja. Cores quentes, somente essas lhe acariciariam o corpo de agora em diante. Saiu pela casa, juntando tudo que não reverberava, tudo que estava apagado, deixou vários móveis e roupas sobre a calçada, o olhar-susto das vizinhas lhe deu mais coragem. Olhou as paredes da casa: brancas demais, sérias e assépticas, paredes hospitalares. Atravessou a rua, o vendedor da loja de materiais de construção muito assustado lhe ajudou a carregar as latas para a casa. Afastou os móveis que restavam, e começou a jogar tinta nas paredes, e ria como nunca pode, como nunca deixaram, e aniversaria como sempre desejou, dentro de paredes escorrendo tinta, dentro de si mesma escorrendo-se em livre-vermelho de mulher. Enquanto as paredes secam, vai fazer um bolo. Todos os ingredientes sobre a mesa, a mistura, a paciência, acender e cuidar dos fogos: no forno, no céu, em si mesma. Olha pela janela, o parco jardim está morto, esturricado. Enxada, pá, buracos, terra remexida, marrons vibrantes, pena não ter tempo de ir procurar mudas de rosas, então imagina-as: nesse canto as rosas amarelas, naquele canto as vermelhas, lá as hortênsias, aqui as margaridas. Toda suja de terra, o sol continua nos olhos, aniversário bom, tem pena porque o jardim não é imediato como as paredes. Como pode aniversariar-se mais? Anda um pouco pela casa, ficaram boas as paredes, olha o bolo, prepara uma cobertura. Frutas, preciso de frutas sobre a mesa. Na verdureira, lhe perguntam o que estava acontecendo. Responde evasiva que não era nada, só umas mudanças, para aproveitar o sol e o aniversário. Maçãs, laranjas, uvas, cerejas, melancias, melões, mamões espalhados sobre a mesa, sobre as cadeiras, sobre a pia, frutas colorindo de açúcar a casa. Lambuza-se na melancia, gospe as sementes e come as uvas com o bolo e bebe suco de laranja e laranja-se por dentro e por fora, é um crepúsculo feminino. Aninhado entre nuvens, o sol despede-se da segunda-feira e de seus olhos. Ela ainda aniversaria-se um pouco mais bebendo o que resta do suco e comendo a fatia da melancia até que não sobre nenhuma cor, nenhuma doçura. A casa ainda cheira as cores recentes, mas lá fora a noite vai vencendo a cor, uma ponta de tristeza lhe alcança o pé, depois a perna, atravessa-lhe a garganta e chega nos olhos, dessas vez mareados de lágrimas. Recolhe a sujeira, limpa uns pratos, guarda um resto do bolo na geladeira, recolhe-se sozinha para dentro de seu quarto novo. O cheiro de tinta lhe tonteia um pouco, seca algumas lágrimas, escova os dentes, tranca-se de novo, por mais um ano, até o próximo aniversário.
Um comentário:
Legal Rubens, eu tenho um conto publicado que é bem próximo disso, chama-se O Banquete. Abraço. Excelente texto. Umas cores para o meu dia. Que anda bastante funesto.
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