JANEIROS FUTUROS
E lá se foi janeiro. A vida atravessa-me as carnes feito navalha. Janeiro é morto, Inês é morta e o jeito é correr sem pensar no quanto o tempo passa, no quanto ele se adianta a passos largos. Foi um mês de recados, alguns desastres, duas mentiras, um divórcio, um luto pelos 30 anos de casamento acabado que durou exatas 26 horas, três viagens, meia bebedeira, talvez 10 ou 15 lágrimas e futuro, muito futuro. Explico: sou Ana Maria Oliveira de Matos, agora só Ana Maria Oliveira, já que o ‘de Matos’ espero que tenha ido para um mato sem cachorro, junto com o traste. Óbvio que falo do ex-marido, e antes que me perguntem porque aguentei 30 anos, já respondo: mulher tem uma forte propensão à cegueira, primeiro a amorosa: era lindo a praga, tinha uma coisa assim John Travolta, bom, essa foi a primeira cegueira, apaixonei, dei, casei, ou melhor, para honra de mamãe e papai, casei e depois dei, fui vivendo ali, apaixonada, resumida debaixo da asa dele, achando Malu Mulher e todo aquele papo de liberação feminina a maior falácia da paróquia. A vida seguia. Missa todo domingo, sexo de vez em quando, umas galinhagens perdoadas, afinal, homem é assim mesmo, já dizia mamãe com a concordância silenciosa de papai. Depois veio a outra cegueira poderosa, filhos, tive dois, foram crescendo e eu diminuindo, não foi culpa deles, claro, foi culpa minha, afinal a culpa é sempre da mãe, não é?Então, cresceram, escola, primeiro emprego, primeiros relacionamentos, futuras noras, essas coisas foram me tomando o tempo, a ponto de eu esquecer dele, o marido, quer dizer, o ex-marido, e, claro, de mim. Depois veio a cegueira da idade, já me achava muito velha para começar tudo de novo, e olha que eu só tinha 40 aquela coisa de nunca ter trabalhado, de não ter continuado os estudos, de viver só para o marido e os filhos e a casa, quer dizer, a limpeza da casa, sim, porque além de tudo eu me achava a cheia de orgulho e nunca quis empregada, ou seja, além de cega, burra. Bom, continuando, então, além dessas cegueiras tem aquelas do tipo: ‘o que os vizinhos vão pensar?’, ‘o que aquela tia que mora no interior de Goiás vai dizer?’, enfim, fica arranjando motivos espúrios para manter o que não pode ser mais mantido e nessas cegueiras eu vivi 30 anos redondinhos. Aí você deve estar se perguntando como ela conseguiu coragem de largar tudo e eu respondo: o meu filho mais velho foi abandonado pela mulher, eles estavam casados apenas dois anos. O coitadinho veio me pedir para eu falar com a mulher, quer dizer, ex-mulher, e lá eu fui toda educada, bancando a sogra boazinha perguntar por que ela tinha abandonado meu filho. Sabe o que ela respondeu? Digo aqui com as mesmas palavras: “olha, dona Ana Maria, eu abandonei o seu filho porque eu não quero acabar que nem a senhora”. Eu respirei fundo e percebi, naquele instante, que nem eu queria acabar como eu. Bom, o resto vocês já sabem, o resto é só futuro e quantos janeiros eu puder aguentar.
Um comentário:
Espetacular Rubens. Excelente. Muitas Marias e Mários estão apenas vendo a banda passar.
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