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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Uma crônica de Rubens da Cunha

Crônica publicada no jornal A Notícia em 10/02/2010
LUTO

Enterraram cães vivos na minha cidade. Resolvo escrever sobre o assunto. Não é fácil. Torna-se árduo usar a linguagem e a consciência sobre a morte – justamente os elementos que nos diferenciam das vítimas – para falar de um ato que ultrapassa, ou melhor, assassina esses elementos. Que palavra qualifica enterrar cães vivos? Para que todos os séculos de discussão filosófica e religiosa a respeito de moral, ética, bondade, empatia, se a barbárie ainda é nossa melhor ferramenta para a manutenção da vida e do nosso iníquo poder sobre a terra? Alguns afirmam que há um certo exagero em toda a celeuma provocada pela denúncia. Eram apenas cães. Pessoas estão sendo maltratadas e enterradas vivas a todo minuto e ninguém faz nada. A minha indignação está justamente aí: eram apenas cães. Era apenas a inocência, apenas o bicho destituído de qualquer malícia, apenas o animal todo confiante, todo entregue à mão do homem, eram apenas cães vítimas da empáfia humana. Se nós nos destruímos é problema nosso. Faz parte da nossa espécie, junto com a linguagem e a consciência, gostar muito de nos matarmos mutuamente, mas o problema é que a vontade de destruição ultrapassa os limites da espécie, vai até os outros animais, e claro vai até ao reino vegetal e mineral.Talvez seja uma compensação pela nossa inferioridade na natureza: justamente a única espécie que se dizimada de uma vez só não faria a mínima falta, é aquela que dizima tudo ao seu redor. Enterraram cães vivos na minha cidade. Não é ficção, não é cinema, não é performance, é apenas a vida cotidiana mais uma vez expondo suas misérias. Outros ainda chamam o ato de desumano. Penso ser um erro: nada mais humano do que enterrar cães vivos. Nada mais próximo da nossa condição do que esse exercício de maldade concentrada. Outros cães e gatos envenenados, enterrados vivos, mutilados, devem estar reclamando porque morreram sem que ninguém visse, asfixiaram-se sozinhos sem que ninguém lhes desse espaço para o grito. Não foram parar nos jornais, não foram motivo de pena de alguns, nem de crônica de outros. Anônimos morreram e seus anônimos assassinos, muito provavelmente, foram à missa ou ao culto, pediram a Deus uma vida melhor, alguns até agradeceram a bela vida que estão tendo. Nada lhes pesa. São pessoas limpas, por isso mantém seu espaço na terra também limpo de animais imundos. E, diariamente, abastecem-se de veneno e paz. Por outro lado, existe a notória incompetência do poder público corroborando com a matança. O caso aqui narrado é específico porque foi denunciado e quem enterrou os cães foi um funcionário público com uma patrola. O discurso oficial, como sempre, já veio cheio de desculpas e providências. Como sempre, desculpas e providências paliativas. Mas e todos os outros crimes cometidos no silêncio da ignorância? Enterraram cães vivos na minha cidade. Estou de luto, pois minha crença no humano foi enterrada junto.

4 comentários:

Anônimo disse...

Esta é tua melhor crônica, Rubens.

Karl

Profº. Cristiano Moreira disse...

rubens, sabe quando a linguagem vira pedra e quebra nossa vidraça? poi é
to juntando os estilhaços agora.

Rubens da Cunha disse...

Karl e Cristiano, obrigado, fico triste por ter escrito esse texto, mas alegre porque ele chegou tão bem em vocês.

Dennis Radünz disse...

Por acaso, estava em Joinvilleza e li em 'A Notícia' a matéria na seção Polícia sobre os cães enterrados vivos. Essa cidade me amedronta (e houve o caso da menina morta na pia batismal do Iririú): detrás dos edifícios espelhados tem violência surda nas entranhas.