FABULAÇÕES REMINISCENTES
“A estética tem por objetivo o vasto império do belo.”
(Hegel in Estética)
O corpo dentro do corpo: pulsão e memória. Também vazio, nadeza e silêncio. O corpo fora do corpo: memória, sentido, imagem construída, caleidoscópio, fragmento. O que sai de mim ainda é meu? O que acumulo e cai no esquecimento é memória? O devir bailarino de sombras e luzes que capturo e carrego me é imanente? Se se tem a memória o que é feito da outra parte que é o esquecimento? Como penetrar na memória do esquecido? E de pergunta em pergunta chegamos a desinstruções dos sentidos para recobrar o impacto que a exposição da jovem artista Juliana Crispe nos provoca. O trabalho da artista, exposto na Galeria Municipal de Artes de Florianópolis, nos reaproxima da poética da imagem há muito perdida e vulgarizada. A matéria de Juliana é o corpo fora do corpo, mas dentro do corpo ainda, portanto memória. Sua poética é construída a partir das pegadas sutis que o corpo, na sua trajetória rumo ao esquecimento, vai perdendo para construir um presente-passado-presente. A sombra, o cílio, o cheiro, o suor e suas mitologias são abordados, na exposição que leva o título Fabulações Reminiscentes, como o microcosmo do apagar-se e aceder-se diário. E se Heráclito nos coloca no seu panta rei e diz que a matéria primordial, de onde todas as outras coisas derivam, é o fogo. Então podemos dizer que a arte de Juliana Crispe vem do fogo porque arde, arrebata, desequilibra, morde a memória e inscreve sua imagem (no caso as fotografias) na memória-carne da retina, e, sobretudo, para acompanharmos o raciocínio do filósofo, modifica a matéria-corpo pela ardência até alcançar o corpo-matéria. Estamos, seguramente, diante de uma espécie de tatuadora de almas. O vídeo-arte e as fotografias sequenciadas resultantes das experimentações da artista conseguem prontamente a absorção dos/pelos sentidos (aisthetikos). O mesmo não se pode dizer da tentativa de dialogar com a literatura, pois há momentos em que a palavra polui a imagem, mancha o silêncio e redunda a tensão já provocada, por isso se torna excesso. O trabalho que ela propõe com as sombras não é propriamente original, pois o poeta Mário de Andrade deixou uma sequência de fotos similares, todas tiradas por ele na fazenda Santa Tereza do Alto, da artista Tarsila do Amaral, que se intitula Sombra minha, contudo isso não compromete a força aterradora que a artista imprime em suas obras. Estamos diante de um belo atroz. Navegar pelas imagens de Juliana Crispe é nadar na cartografia das ampulhetas e clepsidras. Chegar perto de sua luz e mergulhar no tempo dentro do tempo, no corpo dentro/fora do corpo?: derrete as asas das retinas.
“A estética tem por objetivo o vasto império do belo.”
(Hegel in Estética)
O corpo dentro do corpo: pulsão e memória. Também vazio, nadeza e silêncio. O corpo fora do corpo: memória, sentido, imagem construída, caleidoscópio, fragmento. O que sai de mim ainda é meu? O que acumulo e cai no esquecimento é memória? O devir bailarino de sombras e luzes que capturo e carrego me é imanente? Se se tem a memória o que é feito da outra parte que é o esquecimento? Como penetrar na memória do esquecido? E de pergunta em pergunta chegamos a desinstruções dos sentidos para recobrar o impacto que a exposição da jovem artista Juliana Crispe nos provoca. O trabalho da artista, exposto na Galeria Municipal de Artes de Florianópolis, nos reaproxima da poética da imagem há muito perdida e vulgarizada. A matéria de Juliana é o corpo fora do corpo, mas dentro do corpo ainda, portanto memória. Sua poética é construída a partir das pegadas sutis que o corpo, na sua trajetória rumo ao esquecimento, vai perdendo para construir um presente-passado-presente. A sombra, o cílio, o cheiro, o suor e suas mitologias são abordados, na exposição que leva o título Fabulações Reminiscentes, como o microcosmo do apagar-se e aceder-se diário. E se Heráclito nos coloca no seu panta rei e diz que a matéria primordial, de onde todas as outras coisas derivam, é o fogo. Então podemos dizer que a arte de Juliana Crispe vem do fogo porque arde, arrebata, desequilibra, morde a memória e inscreve sua imagem (no caso as fotografias) na memória-carne da retina, e, sobretudo, para acompanharmos o raciocínio do filósofo, modifica a matéria-corpo pela ardência até alcançar o corpo-matéria. Estamos, seguramente, diante de uma espécie de tatuadora de almas. O vídeo-arte e as fotografias sequenciadas resultantes das experimentações da artista conseguem prontamente a absorção dos/pelos sentidos (aisthetikos). O mesmo não se pode dizer da tentativa de dialogar com a literatura, pois há momentos em que a palavra polui a imagem, mancha o silêncio e redunda a tensão já provocada, por isso se torna excesso. O trabalho que ela propõe com as sombras não é propriamente original, pois o poeta Mário de Andrade deixou uma sequência de fotos similares, todas tiradas por ele na fazenda Santa Tereza do Alto, da artista Tarsila do Amaral, que se intitula Sombra minha, contudo isso não compromete a força aterradora que a artista imprime em suas obras. Estamos diante de um belo atroz. Navegar pelas imagens de Juliana Crispe é nadar na cartografia das ampulhetas e clepsidras. Chegar perto de sua luz e mergulhar no tempo dentro do tempo, no corpo dentro/fora do corpo?: derrete as asas das retinas.
10 comentários:
sim, o mais belo da crítica é sua capacidade de nos colocar na alma o artista e a arte não visitada, provocar a curiosidade alegre. Certamente por suas palavras vou me derretendo em conhecer o trabalho de Juliana :)
Obrigado querido. Ah! Teu livro da obra completa da Delminda Silveira está aqui em casa a tua espera. Abraço.
E vai mesmo conhecer o trabalho da Juliana que ela merece, muito.
Ainda não conheço o trabalho da Júlia, mas depois de ler esse texto gostoso, adoraria conhecê-lo.
Até dia 30 deste mês está exposto na Galeria Municipal de Artes, ali na praça XV. Das 10 às 18h. Vale muito uma visita.
oi marco. vou visitar o trabalho, sim. o que está esquecido não deixa de existir, apenas permanece em uma espécie de cripta. gosto de questões sobre a memória. discordo do ponto onde falas da perda de uma poética da imagem. imago e poiésis caminham juntas, acredito. e existem vários pensadores contemporâneos debruçados nos estudos sobre imagem: Georges Didi-Hubermann, Giorgio Agamben, por exemplo. a imagem com oportadora de história e, principlamente, de memória.
abraço grande.
A discordância é sempre necessária. Penso na imagem a partir de Walter Benjamin. Penso na morte da imagem ou na banalização dela apartir da enxurrada de imagens-torturas que nos arrebatam e que, por excesso e rapidez, são líquidos que perdemos no pensamento. Não digo que ela está perdida, mas está bem escondida. Lá na Galeria, no trabalho da Ju, você vai ver que ela pode e deve reaparecer e vive na memória e na história. Abraço.
penso que se trata da anestesia pelo excesso de estímulos da sociedade de donsumo (espetáculo). tem um texto da Susan Buck -Mors chamado Estética e Anestética - sonsiderações sobre o ensaio sobre a reprodutibilidade de benjamin. a ufsc publicou numa das travessias, acho q a numero 36.
eu tenho uma tradução ao espanhol.posso tirar uma cópia.
Sinceramente, agora estou em outras pesquisas. Sim: trata-se da anestesia pelo excesso, mas não é só isso. Há uma falência nisso tudo. Uma falência da percepção que é muito perigosa. Fico agradecido pelas referências. Tenho estudo o Agamben mais na conceituação do que é o contemporâneo propriamente dito. Se olharmos a atual poesia produzida no Brasil vamos ver como essa falência da percepção acaba sendo reproduzida maquinalmente. Claro que há os clarões (Heidegger), mas são raríssimos. De todo modo grato e vamos que vamos. Se o rosto de uma mulher faz a terra tremer o que não fará o corpo inteiro? Essa é boa! E a gente tem que conviver com tudo isso. Abraço. Eu quero é que a terra voe...
É incrível esse poder para usar as palavras que faz de qualquer débil leitor,um sedento..
Impossível não ficar curiosa pelo trabalho da Juliana.
grande abraço
Postar um comentário