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quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Zeke Berman, 1983


O texto abaixo é dedicado
aos bardos Cristiano Moreira e Antonio Carlos Floriano
e às pitonisas Patrícia Moreira e Marcela Urbano.


Ler o texto abaixo enquanto escuta Bob Marley:

http://www.youtube.com/watch?v=rbOqJkXB_9w&feature=related

ou

http://www.youtube.com/watch?v=yJ7ehJPYo4Q

Ele acorda de sonhos intranquilos: se a vida é um absurdo, só o que lhe resta é casar com um buraco na parede: e mais: escondido entre cactos espinhentos, observa o relógio de seu avô lentamente oxidar na areia do quintal: o relógio de seu avô que, morto, não afoga mais tosses no lenço.

Anda do banheiro ao quarto: do quarto à cozinha: da cozinha à varanda: e, por não ter um corpo verdadeiro, finge que é a mais alta das palmeiras imperiais na Quinta da Boa Vista: recebe em suas narinas de palmeira imperial o vento inteiro que jorra do mar: cansa de ser palmeira imperial: o desejo de casar com um buraco na parede retorna: ele confessa:

“Eu acordo muito cedo porque dormi na cama ao lado das venezianas e dos ladridos dos pit bulls”.

Foi urinar sem acender a luz: o pulmão oscila ao ritmo alternado de uma respiração que guarda em seu vazio um nó de fogo coroado: o coração: repuxo d'água por cima das pedras lavadas pelo mar setentrional: de todo lugar emana um silêncio sem arestas de ovo: fomos dilacerados desde o nascimento: as pupilas cravadas no jarro com vento dentro: os tímpanos cravados no zaúm que o vento possui quando é uma oração nas folhagens.

Os que sofrem dos ossos atrás dos biombos, sofrem calados atrás dos biombos com pequenos desenhos de íbis: as conchas inocentes no areal: agora ele está inteiramente acordado: pensa que não aguenta sozinho o vinagre dos dias: pensa que necessita de gim, mescalina, mulher nua: pensa que o catarro no urinol o instiga a meditar sobre o nojo e a solicitar a Beatriz que não se vá, porque Beatriz é o que restou de beleza no mundo:

“Fica comigo”.

“Adeus” – diz ela sem emoção nenhuma.

Vive tão só, que até pode ser flagrado puxando-se para fora do imenso aquário limoso no hall de entrada dessa casa fria: os ruídos mates da rua o serenam: essa é a casa fria onde aquele que acorda de sonhos intranquilos vive acossado pela sombra: a lâmina da gilete luze: ele olha em torno a sala exígua: os cabelos no ralo da banheira: as nódoas no sofá: as venezianas quebradas, oblíquas, contra a vidraça: venezianas também chamadas de persianas, tabuinhas:

“Dói minha a cabeça: esse tédio é um nojo que arrepia: não sinto nojo ao nada, porque o nada me ventila: dói-me a cabeça: salva-me um copo de água e a aspirina”.

Entre as figueiras-bravas ele adivinha os acordes da música de Haydn, música que se infiltra no quarto de banho encalhado sob a luz: uma ânfora grega verte vento lá fora: ele precisa arranjar urgente uma tábua de salvação para escapar desse mundo dos assassinos: nada melhor do que a literatura para escapar dessa morte, que também é um tigre: a boca a mover o fogo frio antes de consentir uma frase: ele é duas orelhas no quintal baldio: um caule de planta bravia e uma calma nos nervos:

“E agora, o que vai ser de mim depois que eu acabar essa frase?”

O fumo do cigarro dele não acaba nunca: a garganta apertada com nós de nogueira ou de carvalho: ele escureceu ao engordar: precisa da lupa para ler, porque gastou os olhos a raspar nas pedras dos livros: os choupos só não incomodam os que, sob as lápides, nunca mais escutam a chuva: a língua dele um talo na água benta: na água benta para que não apodreça: não precisava ser benta, bastava ser água: e com que propósito ele devia aclarar a língua com a palavra?: sem a palavra a língua some, a língua retorna ao reino das sombras: ele faz uma cruz na fronte: agoniza porque Beatriz o abandonou: ele diz:

“Engulo lágrimas às pressas, mas não engulo o naco de veneno: guardo uma tempestade sem asma entre as vértebras: só as tempestades não envelhecem: degolo a suçuarana com faca pernambucana: o vento vasculha arbustos lá fora que os escuto, sim, os arbustos que se inclinam”.

Nem com os gatos, em seus dias de folga, pode ele ficar um bocado, a rolar pelo piso axadrezado: os vizinhos mataram os gatos dele jogados no poço: o vazio melancólico na cara dele, de luto pelos gatos extintos: sob os óculos de aro negro a lágrima de cristal: tudo teima em existir: chuvas, anchovas, pedras de escândalo, o bálsamo do riso, o scherzo: tudo queima na pele de um homem abandonado por Beatriz: tudo arde constelações extintas há milênios:

“Volta e meia sorrio como se fosse um banhista na praia dos Cães”.

Ele carrega pianos?: não: ele carrega uma pedra dentro da boca: una pietra sopra: ele a escuta na alta árvore de sua fonte interna: esse bicho atrás dos cactos que observa o relógio do avô oxidar é ele, que confidencia:

“Eu só tenho de meu uma frase que dissolve a dor na música, mas não sei se devo jogar essa frase aos porcos: decidi que devo pronunciá-la: é de Jorge Luis Borges: “Deixaram-me sonhar-te, não ser teu dono”.

A espinha dorsal de Beatriz excita: zoada de besouros: ouro da luz nos talos e nos capinzais se Beatriz bate na porta: eu abro: ela diz que viu águas nas vidraças de minha casa: é a chuva, é a chuva: eu pareço, diante dela, Fred Astaire em pé numa banquisa:

“O ontem é muito longe para mim: minha lembrança só chega às coisas antigas da infância: por exemplo: calhas da casa velha, apito noturno do trem, girinos no tanque d'água, filmes do Tarzan”.

Ele aprendeu a não ver resplendor no Cristo pregado na cruz : ele prefere o Cristo dos lírios no campo e não perde tempo em lamber o mármore dos túmulos: o caudaloso rio é o seu Buddha: pra ficar limpo, ele usa mais sabonete, mais escova, mais água: é aquela bagunça quando os gansos entram embaixo do chuveiro com ele, que, daqui a pouco, vai espalhar aos quatro ventos que agora não é mais o abandonado: a tarde em fuga puxa os cabelos do anoitecer: é noite agora por dentro e por fora de todas as casas: Beatriz retornou depois de um longo e tenebroso inverno e serve na terrina as batatas coradas: os frescos fogos lavam a alma de Beatriz, por quem todos os fundos do mar se curvam: ela confirma:

“Sim, o fruto da árvore do espírito é mesmo a alegria”.

A varanda com os vasos de terracota, o vento de uma raga indiana na vitrola e uma chuva acontece nos degraus: ossos e caroços bem longe da voz de Beatriz, que soa simples: o escarninho e o mofino igualmente bem longe daqui: ele e Beatriz sentem que suas memórias nevam leves no outro mundo: ele e Beatriz salgam os ombros na chuva: ele e Beatriz sobem nas árvores escorraçadas pelo vendaval, depois jogam um pão na cama, comem o pão juntos, molham-se de plantas bravias, a pele nua na pele nua, a noite inteira eles cheiram o silêncio da Cassiopéia.

Ele deseja com ardor a própria vida de Beatriz, que bebe nas labaredas que irrompem dele: os dois sabem, porque leram em Nietzsche, que há neles algo que não pode ser ferido nem enterrado, algo que rompe rochedos, anula a perfídia.

Ela abomina quiabo, Alka Seltzer, ver fezes na latrina: ele adora livros de filosofia, banhos de piscina, Chet Baker: ela adora jazz, gôndola, Kafka: ele abomina barata leprosa com caspa na sobrancelha, falta de dinheiro, destrinçar caranguejo.

Súbito eles se voltam para as figueiras-bravas e não lhes doem mais as clavículas nem o fígado.

Fernando José Karl

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