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quarta-feira, 24 de março de 2010

Uma crônica de Marco Vasques

BONS DIAS I


Bons dias. Aqui as coisas vão como sempre: saudades de você, algumas praias bonitas, outras totalmente destruídas. Uma caminhada por dia. Uma noite de sono a cada 24 horas. Os carros cruzando as mesmas ruas, furando os mesmos sinais. Uns morrendo nos hospitais, outros fazendo sexo. Muita gente passa fome. “Um dia chove, outro faz sol”. Amores nascem e morrem a cada minuto. Uma criança se perde e outra é raptada. Duas velhinhas solteiras me olham pela janela. Um cachorro late na casa do vizinho. Alguns vão à escola. Muitos homens e mulheres sem emprego mordem a sorte nas latas de lixo. Um bêbado dá discurso em plena avenida. Um homem estupra sem pudor sua filha e bate na mulher. A polícia continua batendo em mendigos e crianças. As filas sempre aumentando. Importante lembrar que não há ônibus e, quando há, circula vazio pelas avenidas. Não há pão e nem remédio para todos. Alguns atropelamentos. Uma morte súbita por dia (ou mais). Terremotos já não são mais raridades. Ciclones nos visitam para o café da tarde. Televisão ligada quase 24 horas por dia. O lucro e o sexo permeiam todas as relações. Os políticos continuam políticos: sempre atrás de lucro e sexo. Os padeiros não fazem mais pães (ninguém descobre o motivo). Os pássaros se tornaram mudos da noite para o dia. As cores não mais são distintas. A tristeza e a alegria são sentimentos amorfos. Aqui tudo continua assim. Os pedófilos? Cada vez mais requintados na arte da crueldade. Continuamos sabendo que o corpo se deteriorará, mas continuamos dando valor excessivo a ele. Todos continuam a fingir que a morte não baterá na sua casa. Uma moça nua arranca a pele, ao vivo, dentro de uma jaula dependurada num desses caixotes de muitos andares. Tenho uma prima que coleciona as caixas de remédios que tomou durante toda a vida: são sacos e sacos dentro de um quarto escuro. Uma multidão de homens, mulheres e crianças sobem os riachos secos, cheios de seixos, à procura de uma fonte. Uns meninos mordem facas e vendem pedaços de suas línguas a preços muito baixos. Vagões e vagões de mortos atrapalham minha memória. Há doces, nesta quarta-feira de chuva, espalhados por cima de uns cadáveres insepultos. Eles estão nus. Um tem até um sorriso verde. Os meninos que pisam os mortos emolduraram o sorriso verde da moça de cabelos de fogo. Não poderia esquecer de dizer que uns vivos estão mortos na própria respiração. Eles não enxergam os outros, não têm desesperos, são retos como uma régua de 30 centímetros. Também não posso esquecer que estamos tendo umas noites de poesia. Luiza fala poemas como se todo o corpo fosse um olho vivo nesta terra mórbida e insossa. A terra come uns olhos e consome cor e luz. Assim somos: um voo no olho que queima imagens. Saudades de você. Aqui, as coisas: vão. Sempre.

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