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quarta-feira, 17 de março de 2010

Uma crônica de Rubens da Cunha

Crônica publicada no jornal A Notícia no dia 17/03/2010
A VIDA EM BRANCO
A vida em branco. Tinha medo disso, medo de nada acontecer, ou acontecer tão devagar que nem desse para perceber. A vida em branco. Assistia a novelas, filmes. Ouvia músicas, relatos das vizinhas, fofocas das companheiras de trabalho, todos envolvidos em casos, confusões, armistício sentimentais, intrigas paralelas, altos e baixos e ele nada. Branco, pureza completa. Passou a vida tentando resolver essa situação. Na juventude, converteu-se à Igreja Deus É Provedor da Sua Essência Cristalina. Cultos, preces, orações gritadas, milagres e exorcismos, tudo para encontrar a essência cristalina providenciada por Deus. Ficou lá o tempo de ser exorcizado, batizado, cobrado, e de nada acontecer. A sua fé não conseguia ser despertada. Havia sempre um riso por dentro, sempre uma ironia da qual ele não conseguia se livrar, por achar tudo aquilo um teatro irresponsável. Abandonou a igreja. Pensou em viciar-se. Perambulou pelas ruas atrás dos viciados. Viu seu estado lastimável, morrendo aos poucos, alucinados nas calçadas, debatendo-se com visões às sete horas da manhã. Ficou com medo. Não queria a vida em branco, é certo, mas a noite em pleno dia também não queria. Foi procurar algo que alternasse mais os momentos, que fizesse dele um homem experiente, vivido, que cumprisse a famosa canção de Roberto Carlos: “o importante é que emoções eu vivi.”Amor sempre dá dor de cabeça e prazer. Decidiu apaixonar-se. Espalhou sua solteirice de homem sério e disposto a compromisso também sério. Rolaram pretendentes, escolheu aquela que lhe pareceu a mais perigosa, saia curta, maquiagem espalhada sobre a cara numa tentativa de esconder a idade, os gestos e a fala resvalando na vulgaridade. Parecia a mulher certa, em pouco tempo estaria envolto em intrigas, traições, ciúmes, quem sabe até uma tentativa de assassinato. A sua vida amorosa seria um filme. Deu errado. A dona revelou-se sóbria, caseira, abnegada dona-de-casa e esposa prestimosa. Abandonou a vulgaridade, a maquiagem, rejuvenesceu até. Teve de traí-la. Ela, nada fez, disse que o aceitava assim, que era sua função de mulher. Teve de abandoná-la. Voltou a ser solteiro, mas um pouco mais desconfiado das mulheres. E as personagens estressadas, loucas, psicopatas dos filmes? Por que ele não merecia alguém assim, até a amante que arranjou domesticou-se para estar com ele. Largou o emprego. Achou outro melhor. Fez alpinismo, rapel, paraquedas, viagens a países em guerra, devastados por terremotos. E sempre dentro a sensação da vida passando em branco. Outros diziam que não, que ele olhasse em torno, o quanto tinha feito, o quanto de sorte possuía, de como a sua vida tinha sido melhor e maior do que a maioria das vidas, que ele deveria escrever um livro. Iria dar um grande livro e depois um grande filme. Por fim, convenceu-se a escrever, e ao lembrar-se do que viveu foi percebendo que a sua vida era igual a tela do computador: o fundo branco pontilhado por palavras negras. Nem tudo branco, nem tudo escuro. Vida pontilhada de vida.

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