Eu, Marcuse, sonho que sou uma chuva torrencial lá fora, nos arredores de Bremen, e aquela mulher de nome estranho – Doutscha – acende uma erva.
O vinil rodando na vitrola.
Próximo à janela envidraçada, o guarda-chuva aberto e a repentina sombra que ele tatua nas paredes. Cessa uma chuva, principia a neve. A mulher de cabelos negros, que tem a alma compassiva, confidencia:
“Neste momento” – ela diz como quem se surpreende – “a neve, olha a neve...”
Tento conversar:
“Quer que cesse a neve? Quer um cigarro? Trago fósforos”.
“Não, a neve, olha a neve...”
Doutscha foi sempre uma consoladora para quem, como eu, na vida aprecia a lógica e pretende que existir seja uma raiz quádrupla do espírito. Há chuvas que Deus mesmo envia, e são aguaceiros no vazio, nos telhados e nas vidraças. Recolho-me, não aos esconderijos que os outros têm, mas à sombra da árvore nessa rua de Warmstrasse. Desço os lábios à bica d’água atrás da igreja luterana. Tenho caligrafia regular, sal até nas lágrimas, e os meus livros eu os grafo com mergulhar a pena da melancolia no tinteiro velho, enquanto, ao lado daquela árvore mais escura, alguma deusa de pele transparente me sorri. Tenho amor a isso de haver a deusa Doutscha e, eu acariciá-la, talvez porque, essa noite, eu não tenha mais nada a fazer a não ser enrolar uma erva e ouvir Chet Baker.
Talvez Doutscha só exista nesta narrativa, da mesma forma que o amor de uma alma só pode respirar à beira do vulcão, e, se temos por sina dar amor, tanto vale se o dou à xícara com chá de artemísia ou ao colosso das constelações.
Tenho, muitas vezes, o hábito de fumar Gauloises. Esse disco que flue na vitrola um Chet Baker é o instante ocasional em que a agulha toca a pele do vinil e a música, senhora das minhas horas, consola os dias noturnos da melancolia. Trata-me bem, Doutscha, escuta-me com doçura, menos naqueles momentos bruscos em que, por tédio ou inércia, eu te apunhá-lo a clavícula com a adaga enferrujada. Desconhecida, sim, és, Doutscha, mas por que me preocupa um símbolo, uma escada de pedra, um mergulhar o pão no café, e a razão, Doutscha, o que é? Leio aqui O Livro Negro, de um anônimo da filosofia escolástica: “Para mim a morte explica-se como História Natural, como aquilo que tornou possível o pensamento. Se temos uma meta, parece-me que só pode ser a morte. Tudo o que se diz é sempre sobre a morte. O nosso nascimento lança-nos numa amnésia, ávidos de mar grosso e de palavras, ávidos de algumas sombras de amor. Tentamos ressuscitar a xícara e fracassamos, o fôlego e fracassamos, tentamos ressuscitar o que somos nesse instante e fracassamos, porque não se trata de ressuscitar ou não, trata-se de sumir numa Fuga, de Johann Sebastian Bach, para não se sabe onde, para onde não se sabe mais”.
À sombra de um ventilador, numa casa pequena e repleta com vasos de plantas, lembro-me de tua nudez, Doutscha, lembro-me dela no futuro com a saudade que sei que terei. Nos arredores desse pequeno jardim buscarei a chuva. De meu coração, eu pressinto, uma carpa de fogo escapa em andante lentíssimo e fura a cortina de meu quarto que a brisa estufa de leve e, pelo buraco que a carpa deixou na cortina, eu não verei o vento que não vejo agora.
Fernando José Karl
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