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sexta-feira, 6 de maio de 2011

O sonho de Carl Uytterhaegen encontrado num sebo no Balneário de Saavedra ou o verdadeiro livro perdido de Baroque Marina


Aqui – meia-noite de um verão – confidencio novamente: Eu, Baroque Marina, continuo sendo um mau escritor. Cesso por um instante a trama desse romance que deseja saber, a todo custo, quem foi ou quem não foi o assassino de O Corso, e revelo ao leitor que o verdadeiro livro perdido de Baroque Marina é um opúsculo intitulado Mein Nox (Minha Noite) – um manuscrito inédito de Carl Uytterhaegen – que traduzi diretamente do alemão. Em uma noite miserável e insone, por causa de uns gatos safados que miavam sobre o muro, sob a minha janela, atirei o manuscrito nos felinos. Alguém, uma boa alma, que gosta muito de literatura, achou e, muito tempo depois, vendeu-os para um sebo. Sobre os gatos, continuaram a miar, noites a fio, até que um dia dei-lhes o veneno preciso: aquela cola de peixe.

Numa de minhas incursões pelo centro do Balneário de Saavedra, encontrei, justamente naquele sebo, a referida obra do autor alemão, um pouco comida pelas traças. Eu, Baroque Marina, confesso, fiquei feliz de ter reencontrado esse livro que julgava para sempre perdido.

Meu conhecimento da língua alemã é razoável. O conteúdo desse livro, deplorável. Ao leitor sensível pede-se que não leia Mein Nox. Carl Uytterhaegen já estava demente quando o ditou a seu ajudante-de-ordens, Friederich Linge.

Mais adiante prometo que reinicio, ou continuo, a caçada ao assassino de O Corso. Antes, convido aos fortes de alma que folheiem as páginas de Mein Nox, escrito por Carl Uytterhaegen, que só tinha um testículo.



Mein Nox
(Manuscrito inédito de Carl Uytterhaegen)

Traduzido direto do alemão por Baroque Marina.


Ora, só há um modo de escrever a própria essência;
é contá-la toda, o bem e o mal.

Machado de Assis



Eu, Carl Uytterhaegen, confesso que essa cruenta escritura bem poderia principiar com a seguinte boutade: O menino vai pescar com o pai e volta com o rosto todo inchado. A mãe, assustada, pergunta:

– Meu filho, o que houve?
– Foi uma vespa.
– Ela picou você?
– Não deu tempo. O papai a matou com o remo.

Dias entediantes esses que passo aqui na minha residência do Targhof, nos Alpes bávaros. Sou zombeteiro desde criança. Até houve um episódio engraçado que me recordo bem. Quando, com oito anos, contraí sarampo, não deixei por menos, saí pelas ruas de Braunau am Inn (cidade onde nasci, em 20 de abril de 1889) e, com a intenção de passar sarampo para todas as crianças que deparava pelo caminho, eu as abraçava forte. Dava certo e eu ia dormir bem.

Dizem que eu não gosto dos que são diferentes de mim. Mentira. Todos são diferentes de mim. Se fosse mesmo verdade, eu não gostaria de ninguém. Mas eu gosto de muita gente, principalmente os que se parecem comigo. Não deveria haver diferentes no mundo. Em verdade, em verdade vos digo que o que eu não gosto mesmo, e aqui confesso para que ninguém nos ouça, o que eu abomino mais que tudo é o fato de eu ter que andar por aí com apenas um testículo, um mísero e insuficiente testículo. Compreendem? Todos são diferentes, eu sou o único certo.

Se eu não matasse todos os que encontro pela frente que têm os dois testículos, a morte se incumbiria de matá-los. A morte deles seria uma questão de tempo. Claro, entendo que alguns puristas de coração nobre vão alegar o conceito de liberdade pra decidir sobre o seu próprio destino. Mas, e daí?

Umas vezes eu, Carl Uytterhaegen, busco na coisa puríssima do visível a lepra incurável; o osso de uma chama irrevelada; a visão de palavras concebidas para não dizer.

Eu, contador compulsivo de piadas; eu, o sórdido; eu, a carniça no sovaco da cárie, escrevo com a mesma devoção dos bárbaros de Antúsias.

Reconheço o quanto em mim a alma é a de um porco; ofendo aos porcos, eu sei. Claro que isso que estou escrevendo é uma obra de ficção de um mau gosto irreparável. Mas quem, senão eu, Carl Uytterhaegen, para escrevê-la? Concordo que é totalmente inverossímil que eu confesse qualquer coisa; logo eu que, notoriamente, tenho pudores de virgem.

Sei que, para a maioria, é inverossímil qualquer confissão minha, mas eu confesso: fui eu, sim, que mandei matar, por pura perversão e um certo estado irritadiço, todos os que têm míseros e completos dois testículos. Isto me torna, sem dúvida, o maior assassino de todos os tempos. Minha mãe Bertha e meu pai Kramm devem estar se revirando no túmulo de tanta admiração.

Acabo de acordar: o suor de um pesadelo ainda escorre pela nuca. Nele, o carrasco decepou minha cabeça, e eu fiquei ali, pasmo, feito um sáurio ferido. O carrasco enterrou a minha cabeça separada do corpo numa cova rasa, – e eu tive que me conformar e, agora descabeçado, sei que nunca mais beberei do copo d’água, nunca mais a carícia de um beijo na boca fria.

Já sei que, assim descabeçado, quatro dos cinco sentidos sumiram com a cabeça. Apenas o tato me restou, é óbvio, e, resignado, sentei-me desconsolado num banco da praça Wermann e tocava cada nervura das folhas das árvores.

Assim, depois de horas, havia colhido uma folha de carvalho, uma de jacarandá, uma de gérbera e até um diamante catei do solo arenoso.
As folhas joguei no mar. O diamante falso – como eu –o enfiei no tímpano de Elga Braunlost.

Ela tirava – na velada do chá aqui no Targhof – e pedia que eu cheirasse o falso brilhante.

Aqui, na minha residência na montanha de Obersalzberg, há um sofá para morrer. Quem queira morrer, senta ali e pronto. Antes eu tivesse mesmo apodrecido antes de assassinar a tantos. Era só sentar no sofá e fim.

A língua, enraizada no sentir, isso eu nunca nunca entenderia. A língua, enraizada no gelo, que enlouquece, isso eu entendo. Aquilo que estimula verbo adentro, verbo puro, isso eu não compreendo jamais.

Eu monologo aqui no Kehlsteinhaus (Pavilhão de Chá), no Targhof, enquanto escuto A cavalgada das Walkírias, de Wagner:
– Quando eu morrer direi: Apodreci, Deus, mas porque apodreci, do vosso fundo céu me dispo. Este céu que cobre a montanha de Obersalzberg me cansa. Prefiro a lava, a lava vulcânica das profundas do mais escurento.

Fim do manuscrito Mein Nox


Fernando José Karl

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