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sexta-feira, 13 de maio de 2011

Roger Balen, 2001.



Isadora fala: Sim, confesso que sou uma personagem de ficção. Um vento encanado acaba de amputar o rabo de meu gato angorá. O vento bateu a porta, e só porque com saliva colei o rabo de meu gato já chamam a mim, neste Balneário de Saavedra, de milagreira. Se eu fosse capaz de tal conjuro, o primeiro milagre seria fazer com que o medo (angst) morresse nas pedras.

Alguns não confessam mirando em meus olhos, mas percebo que eles me acham burra, sem condições de urdir um pensamento. Eu encorajo o Baroque Marina a confiar mais em seu taco. Eu digo: Baroque, para se realizar, uma obra escrita precisa provocar sua própria ruína, pois é só na sua irrealização que ela se realiza.

Sim, O Corso irrita porque sabe. Eu, Isadora, confidencio que também irrito alguns machos de plantão, mesmo sendo uma personagem inventada pelo Baroque Marina (que também é inventado), porque sei que dormir é bom; morrer melhor; o mais conveniente, no entanto, seria nunca ter nascido.

Nem sei se vou ter outra oportunidade de falar, por isso me esbaldo aqui nessas linhas. Um outro vento encanado decepa o meu gato, agora é a cabeça. Lá vou, a milagreira e, com água de minha boca, restituo a cabeça do pequeno felino a seu lugar de direito.

É um alívio ser um ente ficcional. Não ter que rastejar aos pés de um Deus que, segundo li, é o único que, para reinar, nem precisa existir. Eu cravo o martelo na cabeça de O Corso, e ele continua vivo. Eu mijo e não há mijo. Eu levanto a blusa e não há blusa.

Sim, o Balneário se chama Saavedra, mas isso é tão vago. E apareceu até um detetive-filósofo, Marcuse, que concluiu de maneira tácita, dizendo: Oras, numa obra de ficção é impossível um personagem morrer.

Nunca entendi porque, sempre que me vê, o padre Otto começa a pronunciar suas teses eclesiais como se tivesse uma barata na boca. Passo a língua de Isadora no clitóris da barata e ela goza na boca de padre, um gozo branco, um gozo do inferno.

Padre Otto implora que eu pare com o bruxedo e me amaldiçoa, e joga sal em mim, enquanto eu digo: quem não tiver pecado que atire a primeira pedra. Ele agora não sabe mais o que fazer com aquela barata que se contorce toda de prazer na sua boca, e grita para que todos ouçam, que ele está roubando o dízimo da igreja, que o padre Otto come as noviças do convento do Carmo, que o padre Otto tem esse nome horrível porque o Deus dele não existe, e, com língua de fogo, ainda desfiro a punhalada final: E sabe o que mais? O padre é muito branco e sua pele é azeda. E ele não crê numa palavra dita em seus sermões de domingo.

O padre Otto refuta meu escarcéu. Com a barata ainda na boca, que se mistura com sua língua; ele, com a mão direita na Bíblia e a esquerda na pia batismal, vocifera que esta é a confiança que temos em Deus. “Se a Ele pedirmos alguma coisa, segundo a Sua vontade, Ele nos ouvirá”.

Eu conto a ele uma história que escutei no bar de O Corso, quando este ainda não estava enterrado a sete palmos no Cemitério Municipal. Se bem que isso pouco importa. O Corso, por causa da cola de peixe, sabemos, continua vivo mesmo estando morto. Eu conto ao padre Otto que um sátiro, ao ser interpelado por um Midas que lhe perguntou o que o homem deve desejar acima de tudo, respondeu: Não ter nascido; mas como isso agora é impossível, o melhor, o mais desejável, é morrer de imediato.

Sim, eu, Isadora, sou uma personagem de ficção e, como estou sem fazer nada, pronuncio alguns nomes de instrumentos de música que crescem em plantações protegidas por cercas de bambu: tarolas, ravanastrões, sambucas, arquialaúdes, pandoras, kins, tchés, turlurettes, magrephas e hidraules.

Espreguiço-me no lençol de linho nesse sobrado da ficção e aguardo que Baroque chegue da mercearia com pão fresco e o leite. Ah, eu pensava que terminaria por aqui, mas lembrei de um segredo que Baroque pediu que eu não contasse a ninguém: Sabe a mão esquerda dele, que ele esconde no colete como se fosse um órgão sexual? Essa mão nunca foi mão coisa nenhuma, mas, acredite quem quiser, essa mão de Baroque é um cacho de uvas.

Fernando José Karl

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