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terça-feira, 17 de maio de 2011

Max Ernst fotografado por Henri Cartier-Bresson, 1955.




Eu, O Corso (agora que Isadora me matou de verdade com o martelo), sou o morto dentro do caixão que sai da igreja dos Lavados. Sinto que o flautista toca um noturno em minha espinha dorsal, e que minha cabeça de nuvem foi soprada pelo vento. Tudo em mim agora é nuvem e nenhuma nuvem sabe de mim nem o nome. Minha língua, sempre aos domingos, era transfigurada em rum. Durante o café da manhã, acordava e a sorvia – a língua de rum – pois estava com sede. O pinguim, em cima da geladeira, a tudo observava com seus olhos de louça.

Aqui, dentro do caixão, constato: a vida é danação e o engenho é falho, contudo, quem tiver ouvidos de ouvir que ouça, pois tenho algo a confessar: não estou nem um pouco sossegado de estar morto e lembrar: “Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada”.

O que escrevi, quando eu vivia, eu só conseguia ler depois de dormir. Eu lia meus textos no sonho e, sabemos, o sonho é uma astúcia da vigília. Eu lia, então, com essa astúcia. Somos todos escravos de circunstâncias externas, por exemplo: aqui estou, contrariado, nesse caixão saindo da igreja dos Lavados (e, o que é mais indigno, morto com um martelo por uma tal de Isadora criada pelo tanso do Baroque Marina), observo o leque que se abre lento nesse dia de aguaceiro. Quem abana o leque contra a testa? Um antigo amor, que abre a blusa no meio da multidão? A puta do Conca la Conca, com seus cabelos negros e compridos? Quem abana o leque, afinal?

O caixão onde estou passa pela frente do Café Continental (nesse lugarejo à beira-mar que se chama Balneário de Saavedra), o caixão faz sombra nas coisas por onde passa – uma pessoa, um muro, um vaso de flores, um cão – e as coisas recebem a sombra do caixão sem saber nunca o que seja sombra ou caixão. Encolho-me para dentro de meu cérebro morto, cérebro seco, cérebro num beco-sem-saída, e, abrigando-me mal nessa casa sem portas e janelas de mim mesmo, fico dias e noites recitando mantras vazios ao vendaval e, quando se aproximar a noite, acenderei os archotes, baterei no tambor, e até nas coisas mais vis do dia-a-dia encontrarei sentido: lavar louça, regar as plantas, cortar o pão, ler um livro.

Mesmo morto, consigo perceber o leque que se abre lento, enquanto minha consciência íntima repousa no silêncio de um filete de sol num chapéu negro. A ressurreição pode ser que se atrase: estou sem ar dentro desse caixão, o martelo ainda cravado na calva, e meus pulmões secam no deserto sem retorno. Já não penso, agora que estou morto, já não amo ninguém – um morto tem língua de pedra –, e agora já sei a que estou condenado, sim, já sei: faça sol ou faça chuva, eu ali embaixo da terra, para sempre.

Nem os arenques defumados vieram me dizer adeus. Mas a Olga veio.



Fernando José Karl

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