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quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Mula de Deus - Poema Final de Hilda Hilst

Equus Mulus. A mula, o animal híbrido. A filha do jumento com a égua. Da mãe herda a força e o tamanho, do pai lhe resta a servilidade e a resistência. Nada transmitirá, estéril, incapaz de transcender, descender, eternizar-se. A mula, imanente em seu corpo “pardacim” e “fosco”. A mula escrava, carregadora de fardos, equilibrista, a mula sempre recebedora dos achaques, dos açoites humanos. Que outro animal melhor serviria de metáfora para o poema final da obra de Hilda Hilst? Que outro animal daria conta de ser a montaria de Deus, a possuída de um Deus cheio de escracho? Nem o cavalo com sua elegância, nem o asno com seu tamanho breve, nem o camelo com sua falta de sede, nem o elefante com seu gigantismo, é preciso que seja a mula, a bastarda, a degenerada da espécie, só ela, a vergonhosa mula, conseguirá carregar uma locução adjetiva tão extrema: de Deus.
Rubens da Cunha







Hilda Hilst


in: Estar Sendo. Ter Sido.


MULA DE DEUS

I

Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Alta, dourada, me pensei.
Não esta pardacim, o pêlo fosco.
Pois há de rir-se de mim O PRECISO

Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Lavei com a língua os cascos
E as feridas. Sangüinolenta e viva
Esta do dorso
A cada dia se abre carmesim.

Se me vires, SENHOR, perdoa ainda
É raro, em sendo mula, ter a chaga
E ao mesmo tempo
Aparência de limpa partitura
E perfume e frescor de terra arada.


II

Há nojosos olhares sobre mim
Um rei que passa
E cidadãos do reino, príncipes do efêmero.
Agora é só de dor o flanco trêmulo
Há nojosos olhares. Rústicos senhores.

Açoites, fardos, vozes, alvoroço.
E há de mim um sentir delicioso.
Um tempo onde fui ave, um outro
Onde fui tenra e haste.

Há alguém que foi luz e escureceu
E dementado foi humano e cálido.
Há alguém que foi pai.E era meu.



III

Escrituras de pena (diria mais, de pêlos)
De infinita tristura, encerrada em si mesma.
Quem há de ouvir umas canções de mula?

Até das pedras lhes ouço a desventura.
Até dos porcos lhes ouço o cantochão
E por que não de ti, poeta-mula?

E ornejos de outras mulas se juntaram aos meus.
Escoiceando os ares, espumando de gozo
Assustando mercado e mercadores

Alegrou-se de mim o coração.



IV

Um dia fui o asno de Apuléius.
Depois fui Lucius, Lucas, fui Roxana.
Fui mãe e meretriz e na Betânia
Toquei o intocado e vi Jeshua
(Ele tocou-me o ombro aquele Jeshua pálido).

Um tempo fui ninguém: sussuro, hálito.
Alguém passou, diziam? Ninguém, ninguém.

Agora sou escombros de um alguém.
Só caminhada e estio. Carrego fardos

Aves, patos, esses que vão morrer.
Iguais a mim também.


V

Ditoso amor de mula, Te ouvir murmurando
Ó Amoroso! Ditoso amor de mim!
Poder amar a Ti com este corpo nojoso
Este de mim, pulsante de outras vidas
Mas tão triste e batido, tão crespo.
De espessura e de feridas.


Ditoso amor de mim! Tão pressuroso
De amar! (E de deitar-se ao pé
De tuas alturas). Corpo acanhado de mula.

Este de mim, mas tão festivo e doce.
Neste Agora
Porque banhado de ti, ó FORMOSURA.



VI

Tu que me vês
Guarda de mim o olhar.
Guarda-me o flanco.
Há de custar tão pouco
Guardar o nada
E seus resíduos ocos.


Orelhas, ventas
O passo apressado sob o jugo
Casco, subidas
Isso é tudo de mim
Mas é tão pouco...

Tu que me vês
Guarda de mim, apenas
Minha demasiada coitadez.



VII

Que eu morra junto ao rio.
O caudaloso frescor das águas claras
Sobre o pêlo e as chagas.

Que eu morra olhando os céus:
Mula que sou, esse impossível
Posso pedir a Deus. E entendendo nada
Como os homens da Terra.
Como as mulas de Deus.



VIII

Palha
Trapos
Uma só vez o musgo das fontes
O indizível casqueando o nada.

Essa sou eu.

Poeta e mula.
(Aunque pueda parecer
Que del poeta es locura).


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