Publicada no jornal A Notícia no dia 18 de novembro
PAISAGEM À JANELA
Codornas gritam do outro lado do muro. Alto. Doloridas como só sabem ser pássaros que não voam. Sobre a brita, dois coelhos passeiam, brincam, parecem estúpidos, tanto quanto algumas pessoas que conheço. Ariscos também. Encostado no muro, 23 garrafas pet, a maioria de coca-cola, cortadas pela metade, cheias de estrume, cada uma com um pé de alface, devidamente atacados pelos coelhos estúpidos e ariscos. Olho os coelhos de novo, também são fofinhos, tanto quanto algumas pessoas que eu conheço, mas não passam disso. Do outro lado, um galinheiro com 12 galinhas poedeiras, todas da mesma cor, todas também com aquele desespero das aves que não voam. Lado a lado, um pé de jabuticaba e um de limão. Inimigos naturais, penso. Parece-me que o limão tem muita inveja da jabuticaba: ele todo enrugado, espinhudo, azedo; ela, por sua vez, redonda, lisinha, toda adocicada e elegante. Também se assemelham muito a certas pessoas que eu conheço. Fico aqui contabilizando: conheço mais jabuticabas ou mais limões? Uma mangueira azul atravessa todo o pátio. Cobra de plástico, inerte, estranha artificialidade na tarde cinzenta. Mais longe, num canto, cebolas-verdes, hortelãs, mais algumas ervas não-identificadas. No lado, um balde preto com uma planta seca. Triste planta morta. Ao lado, um filtro de água, daqueles que os antigos usavam, também feito de vaso com mais uma planta morta. Parece que esse canto do jardim não resulta muito bem para plantas. No caibro, um ninho de correca, diminuto pássaro irritante. Sei disso agora, pois na infância fui treinado para odiar os tico-ticos, já as correcas eram protegidas por Maria, por Jesus Cristo, enfim, relampejos infantis vieram agora que vejo a correca, mas não consigo ordená-los. Perto, um ninho de marimbondo. Esse sim, animal espetacular, suas casas de barro são obras-primas. Tenho pena, mas a obrigação manda destruir tudo. Os coelhos continuam estúpidos, as codornas e galinhas continuam gritando. Da janela, vislumbro, ouço, cheiro um mundo diminuto e silencioso lutar, viver, sobreviver. Tocar, não posso, protegido que estou dentro de minha casca-casa, com todos os tapetes, os chinelos, os perfumes que a limpeza e o bom-gosto me dá, além disso, não me pertencem. Apenas vislumbro da janela, apenas vejo a vida acontecer num ângulo qualquer de visão. Os cachorros do vizinho latem, mas não é para os gatos do mesmo vizinho, talvez para estranhos passando na rua. Cães e gatos parecem bichos acostumados, se bem que vejo sempre os gatos sobre os muros, destilando sua petulância branca e habitual. Também se assemelham a algumas pessoas que conheço. A correca grita mais um pouco, será que vai haver mais uma noite de amor no ninho de palha? Um pequeno inseto voa sobre o pé de limão, perto do pé de jabuticaba, asa nenhuma se empenha. Será que eu estava errado quanto aos meus conceitos sobre essas duas frutas? Será que os insetos preferem os limões? Quase anoitecendo. A visão vai se esfumaçando, ficam apenas os barulhos, naturais e artificiais, compondo a paisagem à janela.
(Quadro de René Magritte)
4 comentários:
Nossa, Marco, acho que eu não havia lido ainda um conto teu; tenho certeza; eu me recordaria.
Identifico-me muito com a tua abordagem; parece que sei...
Um beijo.
Interessante texto.....pessoas doces, amargas, azedas, que voam e q apenas lamentam não voar.sim, me fez pensar!!!!
Priscila querida, esta crônica-conto pe do Rubens, a aminha está abaixo, posto outro texto até segunda. O Rubens é ótimo mesmo. Muito bom o texto dele.
Rubens, achei maravilhoso este seu conto. Parabéns!
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