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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Crônica de Rubens da Cunha

Publicada no dia 04 de novembro de 2009. Jornal A Notícia
OS ANIMAIS-TEXTO

Puxa um livro ao acaso da estante: “Jardim Zoológico”, de Wilson Bueno. Abre ao acaso uma página: 73. Lê. Concentra-se no mundo imaginário de Bueno, na linguagem poética. Visiona “os Zíngaros & os Zongues”, os animais inventados por Bueno para ocupar esse jardim zoológico. Os animais podem ser inventados, mas, ao serem escritos e enjaulados na página 73, tornam-se mais reais do que leões ou elefentes. Engraçado isso: personagens, cenários, ideias, versos, tudo que ser cria em literatura fica preso na página, igual a um jardim zoológico. Entramos, às vezes, num livro e o percorremos inteiro, do começo ao fim, libertamos alguns animais, deixamos outros presos no esquecimento. Em outros livros, sobretudo os de poemas e de narrativas breves, podemos visitar apenas um texto, observá-lo mais atentamente, decidir se vamos trazê-lo conosco ou vamos deixar ali, eternamente, naquela página. Todo leitor tem consigo pelo menos uma dezena de animais-texto de estimação, libertos de algum livro. São animais que o protegem numa situação incômoda de tristeza, ou que o tornam inteligente quando precisa aparentar inteligência. Leitores são seres frágeis, estão sempre à caça de novos textos. Não que os velhos não sirvam mais, mas uma reserva é sempre bem vinda, e mesmo o mais genial texto gasta-se com o tempo, vide o “ser ou não ser” de Shakespeare, talvez o animal-texto mais usado no mundo. Enfim, todo clichê já foi uma frase original. Visita mais um animal de Wilson Bueno: página 33. “Os dicéfalos”, animais com duas cabeças que habitam as geladas florestas da Islândia. Duas cabeças? E se tivéssemos realmente duas cabeças? Ou mais cabeças? Talvez por isso os leitores fazem dos textos que eles libertam dos livros suas outras cabeças. Os textos falam, pensam, sentem pelo leitor, e reciprocamente o leitor também fala, pensa e sente com os textos. É um intercâmbio, um intermédio entre o leitor, bicho de uma cabeça apenas, e as infindas cabeças-texto que ele conseguir libertar, ou melhor, que o leitor conseguir prender a ele mesmo, afinal cada citação, cada lembrança de um texto nada mais é do que amarrá-lo um pouco mais sobre nosso corpo, aprisioná-lo um pouco mais ao lado de nossa cabeça original. Todo leitor, mais do que um dicéfalo, é um pluricéfalo. Página 27. “Os nácares”. Animais que vibram na ausência da luz. Foram vistos por Jorge Luiz Borges, graças à cegueira dele. O leitor também precisa ser um cego para resgatar alguns animais-texto. Precisa não lhes ver a procedência, não lhes ver os espinhos e as agruras. Todo leitor sabe que o melhor animal-texto é aquele que o fere, seja por raiva, seja por beleza, mas é sempre um ferimento profundo e viciante, por isso o leitor precisa de cuidado, libertar um animal-texto feroz sempre de noite, um de cada vez, amansá-lo com pouca leitura, caso contrário será engolido pela força voraz do animal-texto recém liberto e zaz: foi-se mais um leitor em direção à luz.Leitor bom é leitor dentro da escuridão, leitor em busca da luz. Com a luz encontrada, todas as jaulas são abertas e tudo se acaba em nada.

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