Réquiem para um desconhecido
Para Néri Pedroso e Régis Mallmann
Ele morreu nu na paisagem cega. Pernas que terminam e acabam onde os pés, involuntários, levam sua gama de dor, alegria, suor. Um homem é um homem. Brecht já tinha a intuição das nadezas. Uma morte sempre desloca olhar de alguém, quase sempre, para dentro de outro alguém que não seremos. Ela é uma espécie de gelo-carne que entra pelo olhar e nos deixa cheio de um vazio que perturba e arrebata. Aquele homem tinha um destino. O que o esperava do lado de dentro da vida? Um trabalho corriqueiro? Visitaria uma amante? Talvez o sorriso de um filho o esperasse ou mesmo uma dor alheia? Como saber da profundeza de seu destino? Machado de Assis já previa que “suportasse com muita paciência a dor do fígado alheio”. Por isso aquela morte foi só paisagem. Uma casa destruída por um trator burocrático, aquela morte. Em segundos pés pisam cinzas de horas inexistentes. Uma queda de ninguém. Morreu em público e desconhecia toda a mitologia da crucificação da carne. Somos mesmo seres ausentes de outros. Uma morte assim deveria mobilizar a pele e estratificar o empalhamento do olhar. Mas não, não há que se olhar para um corpo colado ao cimento, corre-se o risco da metafísica. Aquele homem que morreu na manhã de quinta-feira, no terminal urbano, teve um súbito desaparecimento da paisagem e de si mesmo. Aquele homem se agasalhou num voo misterioso. O que provoca estranheza, a morte-imagem súbita, logo se esfacela na paragem de desejos outros. É certo que “a morte não melhora ninguém”, mas pode piorar uma multidão. Que multidão sentirá aquele desaparecimento? Uns dois ou três filhos? Uma esposa zelosa? Um amigo de botequim? Se um homem é uma multidão, por que uma multidão mutila o chão na ausência daquele corpo. Nada sabemos de seu rosto, de seus amores, de suas dúvidas. Mas a ausência daquele homem, recolhido friamente do terminal urbano, lateja em algum lugar, no osso, muito provavelmente. O corpo pálido e de olhar fixado ao nada deu sua última lição de abandono. Morreu na multidão para sentir o beijo da mais completa solidão. Morreu na multidão para mostrar a morte que carregamos segundo a segundo. Aquele homem era o ser mais vivo na paisagem férrea daquela manhã. E o céu azulágrima consumiu o som e sentido do corpo. E os viventes, prenhes de nadezas, simulam a vida em perpétuo esquecimento. Aquele homem ressoa vida na paisagem escura.
Marco Vasques
Para Néri Pedroso e Régis Mallmann
Ele morreu nu na paisagem cega. Pernas que terminam e acabam onde os pés, involuntários, levam sua gama de dor, alegria, suor. Um homem é um homem. Brecht já tinha a intuição das nadezas. Uma morte sempre desloca olhar de alguém, quase sempre, para dentro de outro alguém que não seremos. Ela é uma espécie de gelo-carne que entra pelo olhar e nos deixa cheio de um vazio que perturba e arrebata. Aquele homem tinha um destino. O que o esperava do lado de dentro da vida? Um trabalho corriqueiro? Visitaria uma amante? Talvez o sorriso de um filho o esperasse ou mesmo uma dor alheia? Como saber da profundeza de seu destino? Machado de Assis já previa que “suportasse com muita paciência a dor do fígado alheio”. Por isso aquela morte foi só paisagem. Uma casa destruída por um trator burocrático, aquela morte. Em segundos pés pisam cinzas de horas inexistentes. Uma queda de ninguém. Morreu em público e desconhecia toda a mitologia da crucificação da carne. Somos mesmo seres ausentes de outros. Uma morte assim deveria mobilizar a pele e estratificar o empalhamento do olhar. Mas não, não há que se olhar para um corpo colado ao cimento, corre-se o risco da metafísica. Aquele homem que morreu na manhã de quinta-feira, no terminal urbano, teve um súbito desaparecimento da paisagem e de si mesmo. Aquele homem se agasalhou num voo misterioso. O que provoca estranheza, a morte-imagem súbita, logo se esfacela na paragem de desejos outros. É certo que “a morte não melhora ninguém”, mas pode piorar uma multidão. Que multidão sentirá aquele desaparecimento? Uns dois ou três filhos? Uma esposa zelosa? Um amigo de botequim? Se um homem é uma multidão, por que uma multidão mutila o chão na ausência daquele corpo. Nada sabemos de seu rosto, de seus amores, de suas dúvidas. Mas a ausência daquele homem, recolhido friamente do terminal urbano, lateja em algum lugar, no osso, muito provavelmente. O corpo pálido e de olhar fixado ao nada deu sua última lição de abandono. Morreu na multidão para sentir o beijo da mais completa solidão. Morreu na multidão para mostrar a morte que carregamos segundo a segundo. Aquele homem era o ser mais vivo na paisagem férrea daquela manhã. E o céu azulágrima consumiu o som e sentido do corpo. E os viventes, prenhes de nadezas, simulam a vida em perpétuo esquecimento. Aquele homem ressoa vida na paisagem escura.
Marco Vasques
(Imagem: quadro de René Magritte)
4 comentários:
Marco,muito bom mas um tanto frio, triste....Mas, parabéns pelo site.bjs
A vida é um tanto fria, triste... nós inventamos nossas alegrias, sempre. Grato.
Li. Jogo de contrários e sei que nadezas o autor não sofre.
Que bom minha linda. Você é um bálsamo neste mundo paralítico. Beijo e grato pela leitura.
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